A Baleia Azul é um sintoma

Anakin Skywalker não renegou os Jedi e se tornou um Sith simplesmente porque Darth Sidious (chanceler palpatine) o convidou ou o seduziu a migrar para o lado negro da força. Esta semana em entrevista à TV Guará, afiliada da Record News, fui questionado acerca de quais medidas os pais poderiam adotar diante da ameaça da Baleia Azul. A minha resposta à repórter versou ligeiramente acerca de duas coisas: atenção e a necessidade de uma quebra ética do paradigma da privacidade. Que a ideia de privacidade foi uma invenção importante e cara à humanidade, mas que deveria ser vivida com prudência. 

Finalizada a entrevista fiquei com uma pulga atrás da orelha no tocante à minha resposta. Sim, é verdade, a atenção e presença interventiva dos pais são medidas importantes na prevenção de seduções como as de Darth Sidious ou da Baleia Azul. Contudo, enquanto pensava em tudo isso fui inevitavelmente levado em uma direção oposta à da análise proposta inicialmente. 

A questão não é necessariamente, ou antes de tudo, quais medidas os pais devem adotar para se resguardar do fenômeno da Baleia Azul, mas de nos perguntarmos, simplesmente, por que a esta altura do campeonato a Baleia Azul é considerada uma ameaça.

Por favor me acompanhe neste momento: você não acha um absurdo que uma pessoa tire a própria vida porque de alguma maneira ela foi convencida ou seduzida por um jogo ou desafio virtual? Sim é verdade os motivos para o suicídio são diversos.

Todavia, entenda, a questão aqui não é a de trivializar o problema do suicídio, mas de se admirar com o absurdo. Ora, o que é de uma vez por todas este absurdo? Simples! O absurdo é que pessoas - adolescentes e jovens - de várias partes do mundo, têm preferido engajar-se existencialmente e inteiramente em um desafio que lhes promete nada mais nada menos que o estrangulamento premeditado e intencional da própria vida. O absurdo é que para estas pessoas esse desafio têm oferecido mais sentido existencial - ainda que trágica e ironicamente destinando-os ao suicídio - que a convivência em um mundo além do virtual. O absurdo é que facilmente estes jovens têm confiado, literalmente, suas próprias vidas aos cuidados de pessoas completamente estranhas e das quais nunca se viu talvez o rosto. Supostamente o que se espera de adolescentes e jovens é que estejam fortemente engajados em relacionamentos, de amizades e amorosos, pertencendo a grupos de afirmação e solidificação da própria identidade.

O adolescente busca formas de descobrir-se pessoa, luta por sua ipseidade, para tornar-se alguém único no mundo. Alguém reconhecido como tal. O perigo de Blue Whale é que ela oferece ao adolescente uma facilitação da ideia do suicídio. É como se fosse algo parecido com Alcoólicos Anônimos só que o princípio não é o mesmo. A proposta do grupo não é que o indivíduo se reconheça doente, para que por intermédio do companheirismo entenda que é possível vencer. Em Blue Whale o indivíduo não precisa reconhecer coisa alguma, nem para si nem para outrem. Por um falso sentimento de pertença (o que é importantíssimo para qualquer adolescente), o alvo é alcançar um objetivo que lhe custe a vida em prol da afirmação do ideal do grupo. O adolescente segue e se engaja neste desafio de certo modo ingênuo, pois o sentimento de pertença e o reconhecimento que recebe do grupo por estar conseguindo cumprir cada etapa mascaram o destino trágico fazendo com que isto parece algo inevitável. Em suma, o adolescente dá a própria vida para pertencer ao grupo. Para ser aceito, reconhecido e estar ligado a algum ideal nesta vida, mesmo que precise morrer.

Isso não é um absurdo? Percebes?

O problema com o qual me confronto, portanto, não é mais sobre o que os pais podem ou devem fazer para coibir a ameaça da Baleia Azul, mas o que eles e a sociedade de modo geral não têm feito de modo que tão facilmente um desafio virtual ganhe tamanho espaço deixando consequências fatais para dezenas de vidas ao redor do mundo. Será se aqui não fica claro, de uma vez por todas, que, querer matar-se não é sinônimo de querer morrer? Que talvez, alguns destes adolescentes não têm qualquer sorte de laço ou vínculo sólido o suficiente que justifique para ele mesmo que importa ficar ao invés de partir. "Ficar para quem?" 

A Baleia Azul não é uma doença. Ela não é uma entidade nosológica que precisa ser combatida. Muitas vezes antes de combater um vírus é necessário entender a razão pela qual um organismo está tão vulnerável e suscetível. Esta é a mesma perspectiva que se deve adotar aqui. O grande absurdo não está na Baleia Azul em si, mas em como os jovens estão suscetíveis a isso. O quanto o valor da vida diluiu-se no meio intrafamiliar. O quanto essas cordas puíram, não pela ação do tempo, mas por apropriações terrivelmente pretensiosas de conceitos como o de liberdade e privacidade

"Ora, eu respeito a privacidade do meu filho. Confio que ele sabe exatamente o que está fazendo dentro do quarto. Ele entende que não precisa fazer coisas escondidas de mim porque sou um pai totalmente compreensivo". O que há de mais conveniente do que tal ideia? O que há de mais pretensioso na ideia de que meu filho não precisa de mim? De que ele não precisa que eu intervenha na sua privacidade e limite a sua liberdade quando o uso equivocado da mesma lhe traz perigos? O que há de mais conveniente do que: "Meu filho já sabe cuidar de si. Não quero bancar o pai chato!"?

A chatice dos pais foi destruída e com ela o senso de responsabilidade e responsividade pelos filhos adolescentes no momento em que alguns psicólogos e pedagogos começaram a combater o terror da opressão de décadas passadas substituindo-a por uma total omissão complacente que: a tudo permite, que nada impõe, que nada limita, que nada frusta ou proíbe. O nome que dou a esta geração é: "A geração de pais-amigos". Eles dizem orgulhosamente: "Meus filhos me têm muito mais como amigo(a) do que como pai...". O que há de mais conveniente nisso? O pai-amigo respeita a privacidade do filho-amigo, não lhe obriga a desligar o celular e sentar á mesa para conversar em família. O pai-amigo não gosta de parecer chato ao seu filho, ele prefere ser legal e não forçar a barra quando o filho-amigo anda muito estranho, trancado no quarto e isolado de tudo e todos. Ele não intervém e, nem tampouco, obriga o filho-amigo a desenvolver outras atividades e tarefas que não aquelas virtuais. Ele confia piamente que seu filho-amigo já é suficientemente capaz de resolver sozinho seus dilemas, seus conflitos de identidade, seus términos conflituosos de relacionamento, seus vícios concebidos como virtudes da adolescência. Afinal vivemos em uma sociedade de pessoas bem resolvidas! O filho-amigo é plenamente aceito pelo seu pai amigo e isso acontece porque na verdade o pai-amigo nem sequer percebe (ou ignora) que seu filho-amigo precisa de ajuda.  Talvez as palavras da jovem Thalia Meirelles, que nos deixou tristemente semana passada, revelem essa realidade: 

"Minha mãe me tirou minha rotina e passou a assistir tudo em total inconsciência. Eu sei que ela via, mas quem disse que ela percebia? Ela era uma mãe tão atenciosa, o que aconteceu? Porque ela ficou tão alheia? Porque ela demonstra amar mais a meu irmão? Porque ela não me ama? Porque ela não me abraca e me beija assim como ela faz com meu irmão? Porque ela me humilha por causa de um erro tão pequeno? Porque ela não pergunta como foi meu dia na escola? Porque ela não quer saber o motivo de eu estar tanto tempo trancada no quarto? Porque ela não pergunta o motivo de eu usar tanta blusa de manga comprida? Ela ta deixando eu morrer sem fazer nada."

Não quero aqui, fazer desse trecho, ocasião para culpabilizar a mãe daquela jovem. Não cabe encontrar culpados pelo suicídio dela. Isso não faria, absolutamente diferença alguma agora. Mas quero sim que essas tristes palavras, deixadas em uma carta nos façam pensar sobre como temos vivido. A história revela que no fim das contas não é exatamente um amigo que o filho espera do pai. Porque o filho já tem muitos amigos, mas ele precisa de um lugar ao qual ele possa se fixar, um lugar sólido e não líquido como são muitas amizades virtuais. Por isso o adolescente envolvido pelo azul da baleia se pergunta: "Ficar para quem?"

O suicídio entre adolescentes não tem a família ou problemas familiares como único motivo. Porém quando olhamos para o absurdo, este absurdo que acabo de descrever, é impossível não pensar na fragilidade dos laços intrafamiliares contemporâneos.

Enfim, é necessário conversar sobre a Baleia Azul, é necessário adotar medidas para combatê-la, mas ela não deve ser simplesmente caçada. Ela supostamente deveria nos fazer olhar para o lugar certo, para a origem disso, ou seja, para o absurdo. Ou antes disso talvez fosse necessário se perguntar: "Isto ameaça a minha família? Meu filho seria seduzido por ela?". 

Não, a Baleia Azul não é uma doença, mas o sintoma de uma sociedade cujas famílias estão doentes. Não é a Baleia Azul que convence um adolescente a se suicidar assim como Anakin Skywalker não renegou os Jedi e se tornou um Sith simplesmente porque Darth Sidious (chanceler palpatine) o convidou ou o seduziu a migrar para o lado negro da força. Havia um medo antigo no coração do jovem Skywalker e isto foi percebido desde cedo pelo Mestre Yoda, quando Anakin ainda era menino. Anakin temia pela sua própria família.

Neemyas Dos Santos

Comentários

  1. Lúcidas e necessárias reflexões meu amigo. Nos encontramos em meio a "liberdade" que mais me parece abandono afetivo. Enquanto a fragilidade dos nossos laços familiares são produzidas em mundo acelerado, pessoas sem tempo, espetacularização e relacionamentos descartáveis... Temos que enfrentar produzindo sentidos que sejam potência e que nos dê um fôlego de compaixão, compreensão, empatia e amor. Forte abraço,
    Pedro Victor Modesto Batista

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Neemyas Dos Santos
Um pecador salvo pela graça de Deus, marido da Lívia, uma mulher cuja alma é semelhante a um carvalho. Psicólogo e Mestre em Psicologia. Atua como Psicólogo Clínico da Universidade Federal do Maranhão.