Meu psicólogo não me escuta
Se você é psicólogo provavelmente já deve
ter ouvido a seguinte piada:
"...e então, você senta lá, só pra escutar a
vida alheia, e ainda te pagam por isso"
Na época de graduação meu supervisor em
clínica costumava dizer que se você escutar seu paciente já terá feito o melhor
por ele. Quando ouvi isso pela primeira vez achei que isso implicava em uma
trivialização do exercício clínico. Especialmente porque quando você pretende
trabalhar com clínica psicológica você quer fazer tudo pelo seu paciente.
Acontece que na maioria das vezes alguns psicólogos fazem tudo por seus
pacientes, exceto escutá-los.
Isso, todavia, não é um problema de ordem meramente técnica. No Brasil a psicologia como ciência e profissão não pode mais ser tomada como incipiente. Hoje nós temos cada vez mais formas de aperfeiçoamento profissional. Temos uma relativa acessibilidade do recém psicólogo a cursos de especialização e uma crescente diversidade de abordagens para a clínica. No entanto tenho ouvido com bastante frequência a queixa de pessoas que foram ao psicólogo, mas relatam que não se sentiram ouvidas, nem tampouco compreendidas.
"Neemyas, meu psicólogo, não me
escuta...às vezes ele nem me deixa falar, na verdade"
"Tenho certeza de que o que eu estou
falando não tem qualquer importância pra ele porque ele não demonstra qualquer
sorte de interesse ou pelo menos curiosidade"
"Me sinto frustrado e com um sentimento de culpa enorme, porque embora eu queria e precise falar é como se o que eu tenho pra falar não fosse necessariamente digno de uma preocupação clínica."
"Me sinto frustrado e com um sentimento de culpa enorme, porque embora eu queria e precise falar é como se o que eu tenho pra falar não fosse necessariamente digno de uma preocupação clínica."
"Pra cada questão que eu coloco ele
me devolve imediatamente com uma resposta banal e pronta, do tipo: 'a vida é
assim' "
A princípio, a escuta pode parecer algo
banal para a maioria das pessoas, mas é isso que elas precisam e precisarão em
situações de sofrimento existencial - independentemente de haver ou não quadros
de síndrome ou transtorno psicológico. O que não pode acontecer é de a escuta
ser algo banal para o psicólogo. Ela não deve ser um recurso último, ela é
sempre o recurso primeiro.
A grande questão é que a formação em
psicologia tem se esvaziado de nichos de escuta e tem se entupido de
tecnologias* psicológicas. A promessa de boa parte das especializações e
formações sempre enfatizam isso: o quanto você vai ter de conhecimento técnico
e especializado. Isso faz dos futuros clínicos, profissionais cheios de
respostas, mas incapazes de se questionar. Mas a clínica não
foi feita para ser essencialmente** um lugar repleto de respostas,
a clínica é essencialmente um lugar no qual o indivíduo desenvolve uma maneira
criativa e saudável de amadurecer, gerenciar, administrar, transformar, di-gerir e
lidar com as próprias questões. Serve aqui o que diz Gilles
Deleuze*** acerca da aprendizagem:
“Fazem-nos acreditar que a atividade de
pensar, assim como o verdadeiro e o falso relativamente a essa atividade, não
começa senão com a procura das soluções, não diz respeito
senão às soluções"(grifo nosso).
"Como se não continuássemos escravos enquanto
não dispusermos dos problemas mesmos, de uma participação nos
problemas, de um direito aos problemas, de uma gestão dos problemas"
(grifo nosso).
Quando eu era menino, meu pai costumava
repetir um provérbio de sua autoria:
"não seja escravo das respostas".
O que isto significa? Trata-se de não
habituar-se uma forma de pensar que só objetiva o encontro de soluções e se
esquece de compreender as questões. Por isso temos tantos profissionais que se
exasperam diante dos questionamentos de seus pacientes. O terapeuta se torna um
obsessivo compulsivo por soluções e esquece do próprio paciente. As
questões deixam de ser matéria prima do trabalho terapêutico e se tornam
empecilhos e pedras no caminho que precisam ser urgentemente retiradas,
suprimidas, apagadas ou ignoradas seja com uma resposta fatalista e leiga, com
uma explicação psicológica ou mesmo com a administração compulsiva e irracional
de psicofármacos. As questões suscitadas na relação com o paciente se tornam
verdadeiros demônios insuportáveis.
A essa altura do campeonato você já deve
ter percebido que essa não é uma postagem direcionada ao paciente, mas a você
psicólogo. Se você prima mais por obedecer o que Freud ensinou do que escutar como
Freud escutou então você estará fazendo psicanálise, mas não estará
fazendo clínica.
Só existe uma maneira de você aprender a
escutar: falando. Só existe uma maneira de você entender o valor e a
importância da escuta: através do seu próprio processo psicoterapêutico e
supervisionado (e claro o aperfeiçoamento técnico e teórico-prático). Se você
não consegue "calar" suas próprias questões, como poderá ouvir o que
tem o outro a dizer?
Certa vez Jesus Cristo foi convidado à
visitar a casa de duas irmãs, Marta e Maria. Essa é uma história interessante.
Na ocasião do relato bíblico (Lucas 10.38-42), assim que Jesus entrou na casa Marta preocupou-se e ocupou-se
de fazer várias coisas para o Mestre. Ela foi cozinhar, arrumar a casa,
perfumá-la. Enquanto isso Maria sentou-se e se pôs a escutar Jesus. Então
Cristo disse a Marta: "Você está preocupada em fazer tantas coisas pra
mim e, no entanto, apenas uma é necessária". O que seria está
coisa? Estar com ele e ouvi-lo, tal como Maria o fez. Você pode saber fazer
muitas coisas para seu paciente, mas o essencial para o
tratamento é estar com ele. O essencial é escutá-lo.
É verdade que no contexto clínico existem
diversas situações diferentes. Existem situações de aconselhamento, de
avaliação psicológica, de orientação, de diagnóstico e de psicoterapia.
Dependendo de cada situação, o psicólogo irá adotar uma postura peculiar,
contudo em nenhuma delas poderá faltar o essencial da clínica psicológica que é
a escuta. A escuta é o chão invisível da clínica. É o terreno aonde é possível
construir todas sorte de trabalho psicológico. Sem a escuta o psicólogo não faz
nada além de repetir-se a si mesmo nos seus pacientes e
isso não tem nada de terapêutico.
Sem escuta não há alteridade, sem
alteridade não há empatia, sem empatia não há compreensão e sem compreensão não
há efeito terapêutico.
A despeito das infinitas e diversas
situações clínicas, a demanda primordial de todo e qualquer paciente é uma só:
ser escutado. É conversar sobre...
Mesmo que haja resistência, mesmo que o
silêncio impere, mesmo que sejam solicitados conselhos mil sobre decisões mil,
no princípio e no fim das contas o trabalho de qualquer clínico se estabelece
na relação de escuta.
O paciente precisa sair do consultório
sabendo que ele foi escutado, ele pode sair com raiva de você por você ter dito
algo incômodo, mas verdadeiro, ele pode sair triste, ele pode sair sem resposta
alguma, ele pode sair tonto...mas ele deve sair sabendo de que ele recebeu o
cuidado da escuta, pois é isso que lhe dará a certeza de que ele está sendo
cuidado. A escuta é a base da confiança em psicoterapia.
Se você está se perguntando sobre como
aprender a escutar, lembre-se: é falando. Se você não consegue
escutar, é porque não consegue se calar (literal ou internamente falando), se
você não consegue se calar, é porque precisa falar.
*Eu disse que a clínica não é um lugar
feito essencialmente para dar respostas, não significa dizer que o psicólogo
não facilite processos nos quais o paciente está a procura de respostas. A própria
avaliação psicológica é uma ferramente maravilhosa e única para ajudar as
pessoas se compreenderem pela uso de recursos como instrumentos, testes,
entrevistas, escalas e, é claro, a escuta. Portanto, a psicologia
clínica não deixa de ser um lugar de consulta. O que estou a dizer é
que não clínica psicologia, não há consulta sem escuta.
**Quando eu falo de tecnologias
psicológicas não estou me reportando aqui exclusivamente às perspectivas que
tem approaches mais objetivos, diretivos e técnicos (tais como
as abordagens mais comportamentalistas e cognitivistas). Eu me reporto a
psicologia clínica de modo geral. Muitas psicólogos acreditam que são mais
humanos, pelo simples fato de lerem Rogers, Maslow, Rollo May ou outras
abordagens mais humanistas, fenomenológicas, existenciais, hermenêuticas ou as
psicodinâmicas. Nenhuma perspectiva psicológica pode garantir por si só uma
escuta verdadeira ou sucesso de um trabalho terapêutico, você, psicólogo em sua
relação com seu paciente serão os determinantes desse processo.
Neemyas Dos Santos
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