Reamos!
Tenho o costume de ir buscar meus pacientes na sala de espera na clínica onde atendo. Sinto que existe uma diferença entre ir buscá-los e apenas recebê-los. Por isso eu vou até a sala de espera, os chamo e os acompanho até a sala de atendimento. Uma coisa, no entanto, me chamou atenção em mim mesmo. Percebi que já tem um certo tempo em que adquiri inadvertidamente o hábito de dizer algo sempre que eu os chamo. Notei que depois de dizer o nome da pessoa eu acrescento a seguinte expressão:
"Reamos!"
Logo que me dei conta disso pus me a investigar de onde eu havia tirado essa palavra. Não demorei muito a lembrar que se tratava de uma palavra em latim usada no filme A Paixão de Cristo (2004). Ela é proferida ironicamente por um soldado romano na cena que retrata uma das quedas de Jesus no percurso rumo ao calvário.
Trata-se de uma cena muito angustiante porque depois de levar tantos açoites Cristo se desequilibra e por já estar muitíssimo debilitado não consegue nem sequer ficar de pé. Os soldados continuam açoitando-o, mas ao perceberem que ele tinha dificuldades para concluir o restante do trajeto decidem chamar um homem que dentre a multidão para que ajudasse a carregar a cruz. Tratava-se de Simão, o Cirineu. Ele reluta e com muito protesto afirma que não daria nenhum passo sequer se eles continuassem açoitando o condenado.
Nesse momento Cristo se põe de pé com bastante dificuldade e apoia-se na cruz lado a lado com Simão. Os dois se entreolham e daí surge uma das cenas mais constrangedores de todo o filme. A figura de Cristo, o Deus encarnado, completamente decidido a cumprir a vontade do Pai recebe a ajuda de um homem comum, provavelmente um homem negro*.
Depois de terem se ajustado, os dois olham para frente e eis que um soldado romano lhes sussurra em um tom ironicamente "educado":
-Andiamo?
E, logo após...
-Reamos (pronunciado sem o "s").
Não sou expert em italiano, mas sei que ambas as expressões se remetem a ideia do convite ou à ordem: "Vamos!!"
Acho agora muito intrigante, embora pertinente o uso que faço dessa expressão para os meus pacientes. Pois o que é a clínica psicológica senão uma via dolorosa que conduz à crucificação de muitas questões relativas à existência, sem a qual é impossível viver novamente. Ali, no cume do Gólgota está tanto a assunção grotesca da finitude pessoal como também o primeiro passo em direção à ressurreição. A clínica é um lugar de desenvolvimento de novos modos de viver, mas para isso é necessário que muita coisa seja crucificada e sepultada. O Calvário é um lugar de vergonha, pois ali é preciso se desnudar e assumir quem se é.
É bem clara a distinção que existe aqui entre a clínica e o evangelho. A clínica não pode salvar quem quer que seja (e não é esta a sua função). Mas com certeza ela é, por vezes, uma via dolorosa necessária à própria saúde mental. Nela existem muitas quedas, açoites, cuspes, espinhos, chutes e toda sorte de coisa necessária a todo aquele que decidi curar suas feridas interiores. Ao mesmo tempo, nunca estamos ali sozinhos tratando de questões íntimas, existe sempre uma multidão de vozes e olhares estranhos ou familiares cercando aquele que "carrega a cruz". Muitas vezes, vencer a multidão é mais difícil que carregar a cruz.
A pessoa do psicólogo é a mais peculiar possível, pois se identifica tanto com a figura do soldado romano quanto com a de Simão, o cirineu. Ora é preciso ser duro e sempre verdadeiro para recordar o caminho que ainda falta percorrer, ora é preciso se colocar ao lado de quem nem sequer consegue ficar de pé, ajudá-lo a se abraçar com a própria cruz, isto é, suas próprias questões e então seguir. "Reamos" é ao mesmo tempo uma expressão de muitos significados. Por vezes ela é uma palavra de incentivo, outras vezes ela é uma palavra de questionamento, outras é um convite, outras é ordem e ainda outras vezes é acolhimento. Reamos é cuidado.
Obs.: Até Cristo recebeu ajuda para levar a cruz, isso não lhe foi um sinal de inferioridade, mas de humildade. A humildade é exigência para quem quer cuidar do próprio espírito e tratar as feridas da alma.
*Ao que tudo indica Simão era um judeu negro, oriundo de uma colônia judaica no norte da África. Sem sombra de dúvidas os aspectos ligados a discriminação racial já eram presentes na época de Jesus, sobretudo no tocante ao povo judeu.
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